domingo, 14 de março de 2010

Num descompasso só

Nesse romance eles são bem longos e desajeitados. No começo era bem engraçado, um descompasso só. Às vezes ainda encabulada ela vestia-se de princesa e ele a reparava. Colocava salto alto e um belo colar. Ele todo encantador fazia suas costeletas para acompanhar o sorriso muito bem arredondado, que só ele tinha.

Não se viam assim desde suas ultimas lembranças, descalços no meio da chuva com as mãos soltas. Do chão só se via as gotas de suas pisadas como meninos abestalhados diante de muito doce.

Ela então passou a reparar no espelho que já havia esquecido em seu quarto e não mais encontrava suas poesias nos traços falhados de sua caligrafia, pois agora já se deliciava com aqueles olhinhos que iriam lhe acompanhar em suas próximas aventuras não tendo assim mais tempo para amassar papéis. Ele deixou seu cabelo crescer e novamente cantou para ela, dançou no meio das multidões e fez serenata debaixo da cachoeira, num lugar chamado Formosa. Seriam assim e já decididos não se curvariam mais as tristezas da vida.

Contudo naquele dia qualquer em que ela encostou o corpo no ombro dele ainda meio tonta de preguiça sentiu seus braços, aqueles bem longos, a lhe fazer um carinho cauteloso, desconfortável e logo sentiu sua ausência. Ele quando percebeu a distancia de suas mãos daquela cinturinha sinuosa de tantos doces, não suportou o aperto no peito. E assim se desfez. Daquele instante tão preciso em diante eles não se veriam mais.

Ela após assanhar o cabelo se encolheu no seu jardim. Ele não muito diferente buscou seu passado, bem certo de que voltaria sem lembranças pelos palcos afins. E não se deram conta de que não adiantaria mais tanto esforço.

Nos papéis amassados ela voltaria a escrever, deixou as unhas crescerem e chorou tanto que seus olhinhos de meninas não saberiam mais para onde olhar. Por seus contos deixou que cada instante lhe fizesse anestesiar aquela dor. Molhava-se na chuva do inverno que se aproximava mais seca de lá saía. Foi aos bares camuflados esperando que sua música tocasse mais uma vez, uma ultima vez que fosse e voltava pra casa ainda mais triste.

Menina tu ta fraca, menina tu ta muda, menina tu ta feia, menina cadê tu? Todos davam um reparo nela. Ela ainda mais doce afagava com seus longos dedos o rosto daqueles que a lamentavam. Não se importaria mais com muita coisa e desenrolou mais uma vez suas pernas para uma longa caminhada. Gostava dos seus próximos contos, gostava de sentir mais uma vez cheiro esquecido da sua cerâmica e o tremor de suas mãos nos desenhos que ousara fazer, mas não gostava de não saber mais usar as pernas trocadas. As pernas que apenas ele saberia usar que lhe foram dadas numa manhã qualquer, ressacados das travessuras da noite anterior sem medo algum de não se saber pra onde ir. Por isso aquela anestesia no peito, aquele vazio no olhar e aquele cuidado extremo com o que vestir. Era por causa daquelas pernas que ela não dançaria mais.

Num gesto de desapego com a solidão o procurou novamente. Escreveu-lhe com as palavras mais encantadoras, elogiou a saudade do cheiro que tanto sonhava sentir mais uma vez e sem muito falar, constrangida pelo sorriso de esperança no rosto, propôs mais uma noite de amor.

Daí em diante tudo era ligeiro, as pessoas passavam correndo e até o vento que contornava seu rosto era empurrado de lado para que cada segundo pudesse passar mais depressa. Vestiu o seu mais lindo decote e as pernas trêmulas foram enfeitadas com sua meia de tarrafa preta enquanto derramava descontroladamente seu perfume. E espera ansiosa pelas suas belas costeletas e seu inesquecível sorriso muito bem arredondado.

Um comentário:

  1. Lindoo!!! Estou torcendo pelas cenas do próximo capítulo. Tomara que tenha dado certo. Escreve sobre isso, em detalhes, para que nós possamos no deliciar com sua sensibilidade.
    Amo tu, Ruiva.
    Bjos

    Maria Dolores

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